Ana Bertoni faz 93 anos nesta sexta-feira. Também conhecida como minha mãe, dona Ana não está em sua melhor forma: há muitos anos com Alzheimer, ela não anda mais, não reconhece ninguém e já quase não fala.
A imagem da velha frágil embaça, até mesmo para mim, as memórias da mulher que ela foi.
Minha mãe era ativa e enérgica. Trabalhava fora quando isso ainda era exceção para as mulheres. Como a maioria das mulheres que trabalhavam fora (talvez devesse conjugar o verbo no presente), acumulava tarefas domésticas.
Dona Ana cozinhava bem.
Havia noites em que se punha a fritar batatas ou pastéis. No Natal, transformava a cozinha do apartamento numa operação de guerra para produzir quatro vezes mais comida do que os convidados seriam capazes de comer.
Era aos fins de semana que a mãe brilhava na cozinha. No sábado, assava pizzas para mim e os amigos que apareciam sem aviso prévio. Sua feijoada e a bacalhoada faziam sucesso com a família.
Nenhuma receita da dona Ana superava o molho da macarronada. A gente chamava de molho queimado, mas não era bem isso.
O molho de tomate vinha dos Gioielli, família da minha avó materna. Napolitanos, os bisavós se estabeleceram na Penha, onde abriram um restaurante. Dizem que ganharam bastante dinheiro e depois perderam tudo.
Seu preparo é exercício de paciência e atenção. Aos domingos, a casa já cheirava a comida quando eu acordava. A mãe descascava e peneirava o tomate que comprava na feira da rua Inglês de Souza.
O segredo do molho é cozinhá-lo muito devagar, com fogo baixíssimo e sem mexer. Daí a paciência. Em algum momento, o tomate e a cebola vão pegar no fundo da panela. Devem caramelizar na tal da reação de Maillard (de que dona Ana nunca ouviu falar), mas não podem queimar de fato. Aí entra a atenção.
No momento certo, você coloca um pouco de água, mistura a crosta do fundo e repete a operação muitas vezes, por algumas horas.
O resultado é um molho escuro, vermelho amarronzado, algo entre o grená e o terracota, que a inteligência artificial me disse que é a cor 4625 C da escala Pantone.
É um molho quase folclórico, daquelas histórias de nonna de família da Máfia. O cozimento quase eterno, com o queimadinho, elimina qualquer acidez residual do tomate. A cebola é essencial nesse processo, nem pense em omiti-la.
MOLHO DE TOMATE DA MAMÃE BRUTA
Rendimento: 4 porções
Dificuldade: difícil
Tempo de preparo: 3 a 5 horas
Ingredientes
- 1 kg de tomates maduros
- 1 cebola grande picada
- 2 dentes de alho picados
- 50 ml de azeite
- Manjericão a gosto
- Sal a gosto
Modo de preparo
1. Descasque, triture e peneire os tomates. Alternativamente, você pode usar passata italiana, mas o resultado é diferente.
2. Refogue a cebola e o alho no azeite, em fogo bem baixo. Se quiser uma camada extra de sabor, espere caramelizar.
3. Adicione a polpa de tomate e cozinhe sem mexer, até começar a pegar no fundo. Junte um pouco de água e dissolva o queimadinho do fundo da panela. Repita esta operação por 2 a 4 horas, até obter um molho liso e escuro.
4. Adicione sal a gosto e manjericão fresco. Sirva com a massa de sua preferência.
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