Quando Fernando Collor retirou compulsoriamente grande parte do dinheiro em circulação no país, derrubando por um tempinho a inflação e levando ao desespero milhões de brasileiros que tiveram seus recursos congelados, o jornalista Paulo Francis escreveu que uma medida como essa jamais seria editada nos Estados Unidos.
O presidente seria imobilizado ainda no Salão Oval por algum segurança e, caso ainda vivo, dissuadido de expedir resolução tão radical.
Francis não viveu para ver como Donald Trump anda a contar com a leniência dos seguranças da Casa Branca –especialmente desde o “Liberation Day” da semana passada.
Mas tudo tem limite, e mesmo os tycoons do Vale do Silício, que ofereceram docemente seus corpinhos a fim de ser pisoteados por Trump à maneira das fãs de Maria Bethânia, já devem estar a repensar seu apoio incondicional.
Pense agora nas agruras por que passam os camaradas que tocam, vá lá, a Nike, que, como tantas outras “majors” esportivas, fabricam seus calçados principalmente no Vietnã.
No “Liberation Day”, Trump subiu a tarifa dos produtos feitos naquele país para 46%, mas não precisou de uma semana para baixá-la para 10%, na tentativa de isolar a China.
Ainda no momento “46%”, o jornal Financial Times, em reportagem republicada por esta Folha, registrou um analista do Deutsche Bank a considerar uma realocação de fábricas fornecedoras da Nike do Vietnã para “países como México, Brasil, Turquia e Egito”.
Mesmo mantida a taxação contra o Vietnã e na hipótese de a matriz da Nike ter de repassar globalmente a bronca, os brasileiros talvez sofressem menos. As margens para aumento de preço por aqui são baixíssimas em função da concorrência acirrada.
Mas alguma consequência haverá, disse à coluna Sergio Baccaro Júnior, gerente de América Latina da 361º, a mais destacada marca chinesa de running. “Só a Ásia tem competência para produzir os grandes volumes de calçados de performance de que o globo necessita”, disse.
É possível que o produto nacional ganhe terreno. Um player muito importante é a Olympikus, que neste ano celebra seus 50 anos levando a marca a diversos eventos pelo Brasil, como a recente maratona de São Paulo, quando a empresa lançou uma edição especial de seu modelo Corre 4.
A Olympikus também acaba de colocar no mercado um novo produto de entrada, o Pride 4, por R$ 399,99.
Preço tão acessível certamente afugenta quem imagina que é preciso pagar caro por tecnologia –determinação arbitrária de preço, eis outra insídia do capitalismo, pode ser por si só uma razão para uma marca agregar valor.
Márcio Callage, CMO da Vulcabras, que detém a marca Olympikus, costuma dizer que a tecnologia avançou muito no setor calçadista brasileiro nos últimos anos entre outras razões por conta da expansão da comunicação e da vida em rede –movimento que as tarifas de Trump jamais teriam condição de deter.
Mas o otimismo doméstico do executivo pode soar panglossiano diante do que já disse à coluna Baccaro, da 361º, a chinesa que colocou no mercado o tênis mais leve já aprovado para competições oficiais pela World Athletics, o Miro Nude, com 110g.
“O brasileiro segue a calçar carroças.”
Com tudo isso, a neurastenia de Trump pode ser um bom pretexto para você finalmente começar a considerar comprar menos –o planeta, esse infeliz, agradeceria.
Que tal deixar para trocar seu tênis bem depois de rodar com ele os tais 600 km, durabilidade tida como limite nessa conversa para boi dormir que ninguém sabe dizer quem ou quando começou, mas que é acolhida fiel e bovinamente pelos consumidores?
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