O condutor de transporte escolar Gabriel Lima, 30, já jogou a toalha. “Tem mais de dois anos que estou tentando me mudar para outro lugar, porque aqui não dá mais”. Morador do Jardim Apurá, na zona sul de São Paulo, ele diz estar cansado de ter que enfrentar o mesmo problema há vários anos: a falta d’água.
Com raras exceções, o fornecimento na casa onde mora é interrompido todas as noites, retornando só pela manhã. Aos sábados e domingos é ainda pior, com os cortes acontecendo durante o dia.
“Tem fim de semana que a gente não consegue tomar banho, fica com pilhas de louça sem conseguir lavar”, afirma. “Muitas vezes a gente tem que comprar um galão de 20 litros para cozinhar e dar banho na nossa filha de quatro anos.”
O caso de Gabriel não é isolado. Assim como ele, diversos moradores da capital paulista —principalmente de periferias— convivem há pelo mais de uma década com cortes de água, que acontecem rotineiramente, sem nenhum aviso ou explicação.
Tanto a legislação federal quanto a regulação estadual da Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo) dizem que a concessionária tem obrigação de realizar o abastecimento de água em quantidade satisfatória, 24 horas por dia, sete dias por semana.
Interrupções são admitidas em casos de manutenção, emergência ou manipulação indevida da rede.
A Folha ouviu relatos de pessoas que vivem em bairros das zonas leste, norte e sul de São Paulo e questionou a Sabesp sobre as causas do problema, as soluções e se ela tinha conhecimento dos episódios. A companhia chegou a pedir os endereços das casas para averiguar, o que foi concedido pela reportagem com a autorização dos entrevistados.
No entanto, a empresa se limitou a enviar uma nota sobre redução de pressão, onde explica que faz uma adequação na rede de água durante a noite, quando o consumo é menor.
Privatizada em 2024 com o objetivo de antecipar a universalização dos serviços de água e esgoto, a Sabesp também não respondeu se avalia repensar o procedimento para não causar interrupções no abastecimento de água.
A chamada gestão de demanda é um mecanismo que empresas de saneamento usam para reduzir perdas no sistema. Nos horários de menor consumo, aplica-se menor pressão como forma de evitar vazamentos e rompimentos de tubulações.
O serviço para a periferia é pior, simplesmente isso. Não falta água em regiões mais nobres, isso não acontece
A Sabesp, em resposta a queixas de clientes no Reclame Aqui sobre o problema e em uma página antiga de seu site, usa a seguinte analogia para explicar o procedimento: “É algo semelhante ao que ocorre à noite, por exemplo, com o transporte público. Com menos demanda, reduz-se a circulação de ônibus”.
Mas a diminuição na pressão não deveria deixar residências sem água. Só que, na prática, é isso que acontece. Na Vila Gustavo, por exemplo, zona norte de São Paulo, a analista de RH Natalia Bitencourt, 29, convive com cortes pelo menos desde 2014.
Naquele ano, o estado passava por uma crise hídrica, com políticas de racionamento que eram comunicadas previamente.
“Desde essa época não voltou ao normal. É bem comum que durante a noite falte água. Agora em 2025, eles desligam duas, três vezes na semana. A gente está num momento de não saber se vai ter água ou não à noite. Ano passado era mais fixo: desligavam todos os dias a partir das 21h”, afirma.
Além de adaptar sua rotina às interrupções, Natália precisa lidar com os efeitos colaterais desse vaivém. Segundo ela, quando a água volta, a pressão fica muito forte em alguns cômodos, a ponto de estourar e estragar as torneiras.
“Se fosse uma coisa combinada ou se a gente tivesse algum desconto até daria para entender, mas eles só desligam e nunca tem nenhuma comunicação. As pessoas aqui do bairro já acostumaram, não ficam mais revoltadas”, lamenta.
Vizinho de Gabriel no Jardim Apurá, o advogado Wagner Nogueira, 44, conta que já abriu reclamação sobre o problema na Arsesp, na Sabesp, no Reclame Aqui, no Procon e até em um órgão de direitos humanos que fica em Brasília.
Ele diz que, antes, funcionários da companhia de saneamento iam até sua casa averiguar o problema. Agora, nem as visitas acontecem mais.
“Eu comecei a abrir reclamações com muita frequência, todo sábado e domingo. Um dia veio um funcionário da Sabesp e falou que não era para abrir esse tipo de reclamação, que eu tinha que entender que estávamos passando por um racionamento e que as minhas reclamações não seriam mais nem atendidas, seriam encerradas automaticamente”, afirma.
Wagner diz que, mesmo assim, continuou protocolando os pedidos no site da companhia. “Eles então pararam de encerrar a solicitação, para evitar que eu abrisse várias durante o final de semana. Quando tem uma aberta, você não consegue abrir outra até que finalizem”, explica.
A Folha questionou a Arsesp sobre os cortes de água em alguns bairros da capital. A agência não respondeu se tem conhecimento dos problemas relatados à reportagem, mas disse que a situação do abastecimento na região metropolitana de São Paulo é acompanhada “atentamente”.
“Ante essa situação, a agência solicitou à Sabesp, por meio de deliberação, os dados mensais de pressão da rede de abastecimento, o que permite o acompanhamento técnico detalhado e a adoção de medidas adequadas às necessidades detectadas”, afirmou.
De acordo com a Arsesp, a fiscalização é feita com base em monitoramento e análise de reclamações. Quando são identificadas inconsistências, os procedimentos previstos incluem sanções e multa. Questionada se já teria notificado ou multado a Sabesp pelos cortes, a agência respondeu apenas que “atua rigorosamente dentro de sua competência” e toma medidas cabíveis sempre que necessário.
A reportagem teve acesso a um ofício enviado pela Arsesp à deputada federal Tabata Amaral (PSB) em julho de 2024, após um pedido da parlamentar para que a agência fizesse um estudo técnico sobre as interrupções e gestão de pressão em alguns bairros.
Na ocasião, a Arsesp instalou equipamentos que monitoram o fornecimento de água em nove endereços apontados pelo gabinete da deputada. No documento, a agência diz que “os fiscais constataram descontinuidade na prestação do serviço nos endereços avaliados” e que a Sabesp foi notificada.
Os problemas foram constatados em seis endereços, que incluem as ruas onde moram Wagner e Gabriel, no bairro Jardim Apurá, e Natália, na Vila Gustavo.
Tabata diz ter convivido com cortes de água quando morava com sua mãe, numa comunidade no extremo sul de São Paulo. Segundo ela, só após se mudar para regiões mais próximas do centro da capital que entendeu que aquilo não era normal.
“Foi aí que eu notei que tinha uma diferença. A água nunca acabava, enquanto na Vila Missionária, acabava toda noite”, afirma. “Na prática, é uma discriminação de renda e de localização que acontece.”
A deputada conta que, após uma série de questionamentos judiciais, a Arsesp investigou o assunto e concluiu que havia cortes noturnos de água em alguns bairros de São Paulo. Nas conversas que teve com a Sabesp, ela diz que a companhia primeiro negou a existência do problema. Depois, atribuiu os cortes à gestão de demanda.
Na avaliação de Tabata, a política de gestão de pressão acaba sendo um incentivo perverso para a Sabesp. Se a medida foi criada para lidar com a crise hídrica de 2014, hoje ela é uma maneira de controlar perdas e vazamentos com menos custo, já que assim a companhia deixa de fazer investimentos para modernizar a infraestrutura. “E quem sofre é a periferia.”
Essa é a mesma frustração vivida pelo professor Fernando Silva, 43, morador de Capão do Embira, na zona leste, e que sofre com os cortes de água desde 2014.
“O serviço para a periferia é pior, simplesmente isso. Não falta água em regiões mais nobres, isso não acontece. É frustrante, porque pagamos o mesmo preço.”