Elisângela Lemes dos Santos, 42, realizou o sonho de ter o seu próprio negócio em janeiro do ano passado, quando inaugurou uma pequena lanchonete na Vila Farrapos, bairro popular da zona norte de Porto Alegre. O local abriu as portas após ela investir o dinheiro que obteve ao deixar um emprego de 11 anos com carteira assinada.
A empreendedora, porém, foi surpreendida pelas enchentes históricas que devastaram regiões do Rio Grande do Sul na passagem de abril para maio de 2024. Sua lanchonete –ou lancheria, como os gaúchos preferem dizer– ficou quase um mês inundada em maio.
“Tinha comprado quase tudo novo para cá com a rescisão [do emprego antigo]. É como se tivesse jogado isso no ralo”, lamenta Elisângela, que se emociona ao tocar no assunto.
Apesar da catástrofe, que ocorreu há quase 11 meses, ela não pretende abandonar o negócio. Em uma tentativa de recuperá-lo, contou com a ajuda de uma vaquinha, recebeu a doação de um balcão, limpou o que foi possível dos equipamentos, buscou medidas de auxílio dos governos e recorreu a um empréstimo no banco.
A empreendedora também implementou mudanças na operação da lanchonete. Além de vender salgados, doces e bebidas, começou a preparar almoços em marmitas. A ideia é ampliar as fontes de faturamento em meio a gargalos que ainda persistem, como a ausência de um forno maior para assar pães.
“Depois que você realiza um sonho, não tem lógica desistir. Iria me considerar fracassada”, afirma a empreendedora, mais conhecida na vizinhança como Tida, apelido que dá nome à lanchonete. “Foquei em reconstruir a minha lancheria antes que a minha casa. O meu sustento depende daqui.”
O caso de Elisângela ilustra um movimento que vem ocorrendo no Rio Grande do Sul. Após buscarem doações, crédito e outras medidas de auxílio, micro e pequenas empresas atingidas pelas enchentes estão repensando o modelo de negócio para reequilibrar as contas.
“Via de regra, o empresário, principalmente nas localidades afetadas, tem muita incerteza frente ao que vai acontecer. Ele precisa fazer uma gestão refinada, até para dar tempo caso tenha de mudar o modelo de negócio”, diz Paulo Bruscato, gerente da regional metropolitana do Sebrae-RS.
“A circulação de público em uma localidade atingida, por exemplo, pode não voltar ao que era antes”, completa.
O número de MEIs (microempreendedores individuais), microempresas e negócios de pequeno porte diretamente afetados pelas enchentes foi estimado pelo Sebrae-RS em 147,5 mil. O número representa em torno de 10% do total de empresas no estado.
Quando a estimativa considera também os negócios indiretamente afetados, como aqueles que paralisaram as operações por precaução, falta de insumos ou ausência de clientes na tragédia, o grupo atingido salta para 881 mil, apontam dados atualizados pela instituição.
Um levantamento parcial do Sebrae-RS indicava que 75% das empresas já tinham retomado as operações em julho. Um novo estudo deve ser produzido considerando o cenário atual.
‘PRECISO FAZER ENGRENAGEM FUNCIONAR’, DIZ EMPRESÁRIA
Adriane Soares de Almeida, 53, faz parte do contingente que voltou a trabalhar após acumular prejuízos. Ela é dona de um negócio que funciona como hotel e creche para cães em Porto Alegre, além de oferecer serviços de pet shop.
A sede ficava junto à antiga casa de Adriane, que era alugada no bairro Humaitá, zona norte da cidade. Como a região foi tomada pela água em maio, ela buscou novo espaço e conseguiu se mudar em agosto para um imóvel entre os bairros Azenha e Medianeira, longe da mancha de inundação. O novo local também é alugado.
Para recomeçar, a empreendedora queimou economias e mudou o nome do negócio, que passou a se chamar Guardiões Pet. Ela diz que não recorreu a empréstimos e que a ajuda de doações foi fundamental.
Adriane afirma que teve “sorte” ao ganhar um pouco de tudo: de roupas e móveis para a casa até consultoria, notebook e outros equipamentos para o trabalho. Ela relata que só conseguiu salvar 10% dos bens da empresa e da antiga casa.
“Alguns clientes aceitaram pagar um ano de creche ou deixaram algumas diárias pagas. Consegui me virar assim.”
Segundo Adriane, o faturamento está perto do patamar de antes da crise.
“Estou fazendo algumas coisas por conta própria, sem gastar. Poderia contratar alguém para fazer mais tráfego pago [estratégia de marketing digital], mas é um custo que agora não posso ter. Preciso fazer a engrenagem funcionar.”
‘PARCERIAS VIERAM PARA SOMAR’, AFIRMA EMPREENDEDORA
Glaci Träsel, 61, também busca retomada. Ao lado do marido e da filha, a professora aposentada é dona de um espaço que trabalha com produtos naturais e serviços como aulas de ioga na cidade de Arroio do Meio, no Vale do Taquari (a cerca de 120 km de Porto Alegre).
O local, chamado Aloha, foi reaberto ainda em maio, após ficar coberto pela água. O que ainda não voltou a funcionar é um sítio da família que recebe eventos agendados e que oferece café colonial em meio a natureza.
A propriedade teve movimentação de terra durante as enxurradas, e a reinauguração está prevista para o próximo mês de maio, um ano após a tragédia.
Para atravessar os últimos meses, Glaci diz que a família contou com doações, além de ter buscado crédito e medidas de auxílio governamentais e do Sebrae.
A solidariedade ainda serviu para gerar algum caixa durante a crise. Ao longo do ano passado, o negócio de Glaci organizou jantar e cafés em parceria com conhecidos que cederam espaço e com outros empreendedores atingidos pelas enchentes. Voluntários ajudaram a servir as refeições.
“As parcerias vieram para somar. A gente pensou no que fazer para manter a visibilidade da marca, sem ficar mostrando só a catástrofe”, afirma.
A série Reconstrução Gaúcha, publicada mensalmente no site da Folha, mostra a tentativa de reconstrução do Rio Grande do Sul após as enchentes de proporções históricas que começaram em abril de 2024 e atingiram centenas de municípios do estado. As reportagens, publicadas no fim de cada mês, mostram os desafios em áreas como agropecuária, infraestrutura e setor imobiliário, além do empenho na restauração dessas atividades.