Por causa do tarifaço de Donald Trump, Ronald Reagan (1911-2004) voltou à moda. Não apenas pela sua imagem de ícone do conservadorismo ou por ter “vencido a Guerra Fria”. Vídeos de seus discursos contrários às barreiras econômicas são compartilhados nas redes sociais.
…Então, o pior acontece: mercados encolhem e entram em colapso; negócios e indústrias fecham; e milhões de pessoas perdem seus empregos”, disse ele, sobre guerras fiscais entre países.
A ascensão política de Trump foi construída, em parte, com comparações e apropriações de frases do 40º presidente dos EUA (1981 e 1989). A biografia “Reagan: his Life and Legend” (Reagan: sua vida e lenda), lançada em setembro de 2024, aponta algumas semelhanças e reforça as muitas diferenças entre os dois.
A obra, de 880 páginas, foi escrita pelo escritor e historiador militar nascido na Rússia e naturalizado americano Max Boot.
Ela desconstrói a imagem de Reagan como ideólogo do conservadorismo. Não que ele não fosse conservador. Mas o autor afirma que o maior talento de Gipper (para citar um dos seus apelidos) era a sensibilidade política para entender o momento do pragmatismo.
“Ele era conservador, mas rapaz… como era pragmático quando tinha de governar!”, admira-se James A. Baker III, chefe de gabinete de Reagan no primeiro mandato (1981–1985).
Pesquisa realizada nos EUA em 2002, 13 anos após ter deixado o cargo, o colocou com 93% de aprovação. É índice maior do que qualquer presidente da era moderna americana, menos John Fitzgerald Kennedy (1917-1963), assassinado dois anos após a posse.
“O que as pessoas lembram, mais do que qualquer sucesso ou falha política, é seu temperamento tranquilo, o senso de humor e humildade, seu otimismo e, é claro, o incomparável poder de comunicação”, escreve Boot, em uma biografia, em grande parte, crítica ao ex-presidente.
Ele ressalta que Reagan ficava paralisado em disputas internas na Casa Branca. Era incapaz de tomar uma decisão. Mas sua intuição política o fez criar frases que o colocaram na história.
Com um rabisco de lápis, anotou em um discurso preparado com semanas de antecedência a expressão “evil empire” (império do mal) para se referir à União Soviética. Em visita a Berlim, em 1987, disse “tear down this wall” (ponha esse muro abaixo) para se referir ao Muro de Berlim. Todos os seus assessores pediram para que não falasse isso.
Trump se apropriou da expressão “make America great again”, usada por Reagan na campanha que o fez vencer em 1980. Mas o principal “item roubado” pelo atual presidente foi se colocar como um outsider, alguém que “lutava contra o sistema”.
“Governo não é a solução para os nossos problemas. Governo é o problema”, discursou Reagan —frase que entrou para os anais do pensamento liberal econômico.
Boot reproduz frases do biografado em que ele se mostra como alguém avesso à política quando já era governador da Califórnia e, depois, presidente. Como se não tivesse nada a ver com os problemas públicos.
A biografia aponta fatos da vida que o aproximam de Trump. Os dois foram eleitores do Partido Democrata na juventude. Ambos passaram à vida política por causa de sucesso na TV (Reagan também estrelou filmes e comandou o sindicato de atores).
O autor faz, em algumas passagens, Reagan parecer um Inspetor Clouseau da política, em referência ao policial francês interpretado por Peter Sellers no cinema. Um personagem estúpido, atrapalhado, mas que passava por gênio porque tudo dava certo, de alguma forma.
“O superpoder de Reagan era a habilidade de reordenar o mundo como ele desejava que fosse —não necessariamente como era. Isso lhe permitia evitar dúvidas e sempre se convencer de que estava agindo de acordo com seus mais altos ideais. Mesmo que não estivesse”, diz o biógrafo.
A esperteza passava pela sua consciência de que deveria ser pragmático, mesmo em pautas em que não acreditava. Tinha talento para espremer acordos que não pareciam possíveis. Como um personagem da poesia de Walt Whitman (“Eu me contradigo. Eu sou amplo. Eu tenho uma multidão em mim”), o conservadorismo que o fez se eleger pouco importava.
Aqui ele se diferencia da truculência atribuída a Trump.
Durante seus oito anos na Presidência, Reagan jamais teve maioria no Congresso. Apesar disso, aprovou acordos de comércio, orçamentos, reforma fiscal, leis de imigração e tratado com a União Soviética para abolir uma classe inteira de armas nucleares.
“Ele acreditava que um líder eleito deve ouvir o veredito das urnas e, se os democratas obtiveram o controle do Congresso, sentia-se compelido a negociar e encontrar um ponto de equilíbrio”, afirma o autor.
O livro argumenta que “Reaganomics”, seu corolário econômico, não era uma doutrina. Tratou-se apenas de uma coleção de slogans.
Apesar de ser “contra impostos”, ele os aumentou com frequência em oito anos na Casa Branca. Condenava gastos públicos, e estes cresceram 70% durante sua Presidência. Foi eleito governador da Califórnia com um discurso pró-vida, comparando aborto com assassinato. Mas fez mais para legalizá-lo do que qualquer outra pessoa pública antes dele nos EUA, segundo Boot.
Respondia pessoalmente a cartas que recebia e mandava cheques para cidadãos comuns quando se compadecia das histórias. Tudo isso enquanto encampava uma política fiscal que exacerbou o abismo entre pobres e milionários.
Discursava sobre os valores do casamento, da família, e as cartas de amor que deixava para sua mulher se tornaram lendárias em Washington. Mas foi um dos únicos dois políticos americanos divorciados a chegar à Presidência. O outro se chama Donald Trump.
Nas páginas do livro, fica claro como Reagan usava seu charme pessoal para cativar líderes de outros países, mesmo os que detestava. Como o primeiro-ministro de Israel Menachem Begin (1977-1983). Era defensor da imigração, do livre comércio e das alianças internacionais, indo na direção oposta de Trump.
No primeiro encontro que teve com o recém-escolhido secretário-geral do Partido Comunista soviético, Mikhail Gorbatchov, em 1985, em Genebra, escreveu em seu diário que “o importante é não ficar a imagem de vencedores ou perdedores”. É a antítese do que pensa Donald Trump.
Segundo Tony Schartz, coautor, ao lado do hoje presidente, de “A Arte da Negociação”, Trump vê o mundo sob uma única perspectiva: você ganha ou perde. Domina ou se rende.
Max Boot deixa claro o quanto Reagan, por omissão ou qualquer outro motivo, foi prejudicial às causas do movimento negro e da comunidade gay. Pouco importa seus assessores dizerem que ele vivia tão no mundo da lua que ficava chocado ao ser visto como racista ou homofóbico.
Ele enxergava a luta pelos direitos civis como algo desnecessário e relutou em perceber a seriedade da epidemia de Aids. Uma insensibilidade que pode remeter a discursos de Trump na campanha eleitoral do ano passado.
“Esses imigrantes fazem os nossos criminosos parecerem bebês. São assassinos a sangue-frio. Eles vão entrar na sua cozinha e cortar sua garganta”, gritou, ameaçador, aquele que derrotaria Kamala Harris meses depois.
Mas o mesmo Reagan, na disputa pela reeleição, em 1984, discursou emocionado na Normandia, França, em homenagem aos combatentes da Segunda Guerra Mundial. Falou sobre os heróis “que libertaram um continente e acabaram com a guerra”.
William Galston, então chefe de campanha de Walter Mondale, candidato democrata no pleito, viu pessoas do seu próprio comitê eleitoral chorarem ao verem o discurso pela TV.
“Foi o momento em que eu entendi que o nosso candidato estava enfrentando uma força irresistível: um político talentoso e um orador inigualável”, disse ele ao livro de Boot.
Dos 50 estados dos EUA, Reagan venceu em 49.