Meses após relançar seu desfile anual prometendo mais diversidade para “celebrar todas as mulheres”, a marca de lingerie Victoria’s Secret mudou suas políticas sobre diversidade, equidade e inclusão (DEI) e suspendeu a meta de promoção para funcionários negros.
A empresa substituiu menções diretas a DEI por termos mais genéricos como “pertencimento” e removeu de seu site a seção sobre diversidade entre seus fornecedores.
As mudanças foram anunciadas em um comunicado interno, divulgado pela imprensa americana na quarta-feira (05), e assinado pela CEO, Hillary Super.
Super afirmou que a empresa continuará garantindo uma equipe “inclusiva, com uma ampla variedade de origens, experiências e perspectivas” e prometeu promover “uma cultura de justiça e oportunidade para todos”.
A Victoria’s Secret segue uma tendência cada vez mais forte nos Estados Unidos desde a posse de Donald Trump.
McDonald’s, Amazon, Google, Meta, Deloitte… Vem crescendo o número de grandes empresas que têm abandonado programas e políticas voltadas à promoção de diversidade.
A Disney entrou para esse grupo ao anunciar, em fevereiro, que passaria a “focar mais nos resultados comerciais”.
Entre as mudanças, a empresa deixará de exibir avisos que contextualizam estereótipos e representações negativas em filmes clássicos como Dumbo e Peter Pan.
Apesar disso, prometeu manter processos de contratação “sem barreiras” e reforçou o compromisso de “defender intencionalmente uma cultura de pertencimento”.
Desde 2022, a Disney tem sido alvo de setores conservadores por suposto “ativismo woke” —termo pejorativo usado pela direita americana para criticar debates e políticas voltadas a questões sociais, como racismo e diversidade sexual.
A empresa enfrentou ataques, por exemplo, após escalar uma atriz negra como protagonista do live-action de A Pequena Sereia.
O movimento de abandono das políticas de diversidade, impulsionado por ativistas conservadores, se intensificou com o retorno de Trump à Casa Branca.
No dia de sua posse, em 20 de janeiro, o republicano determinou o encerramento, em até 60 dias, dos programas federais de diversidade e inclusão, considerados “radicais e ineficazes”, assim como as iniciativas de justiça ambiental.
No entanto, especialistas apontam que o enfraquecimento dessas políticas já havia começado antes.
Em junho de 2023, a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucional o uso de cotas em universidades, que visavam aumentar a presença de estudantes negros, hispânicos e de outros grupos sub-representados.
“O aluno deve ser tratado com base em suas experiências como indivíduo, não com base em sua raça”, afirmou o presidente da Corte, o conservador John Roberts.
Os magistrados decidiram que as universidades podem considerar a experiência pessoal de um candidato, como a vivência de racismo, mas consideraram discriminação racial usar critérios raciais para determinar sua admissão.
A decisão gerou insegurança jurídica também no setor privado, com o entendimento de que qualquer ação afirmativa poderia ser considerada inconstitucional.
Desde 2024, estados como Alabama e Iowa aprovaram leis proibindo projetos e treinamentos de DEI em instituições públicas.
Entre as vozes mais críticas às iniciativas de diversidade estão o gestor de fundos Bill Ackman e Elon Musk —ambos com grande alcance nas redes sociais.
Os argumentos contrários dizem que programas beneficiam desproporcionalmente grupos marginalizados.
Em uma postagem viral no X, Musk declarou: “A ideia [da DEI] era acabar com a discriminação, não substituí-la por outro tipo de discriminação”.
A fala de Musk ecoa o sentimento de críticos da DEI, que afirmam que os programas, supostamente, promovem mais discriminação.
PREOCUPAÇÃO E REUNIÕES DE EMERGÊNCIA NAS EMPRESAS
Em 2023, o The Conference Board, uma associação empresarial e centro de pesquisa sobre tendências de negócios, analisou as iniciativas de impacto social de seus associados.
A igualdade racial ocupava o segundo lugar entre as preocupações corporativas, atrás apenas de ações emergenciais pós-desastres.
Mas, em janeiro deste ano, a organização descobriu que um quarto de um grupo de cem empresas indicou que reduziria seu foco em iniciativas voltadas à igualdade racial e de gênero.
A pesquisadora Marion Devine relata que empresas têm solicitado reuniões emergenciais à organização para discutir o tema.
A reação contrária à DEI já começava antes da eleição. Os ventos dessa mudança já estavam soprando, por assim dizer. As empresas estavam atentas, observando e aguardando
“Agora, o maior desafio é lidar com a incerteza que ela gera. Sem dúvida, há um sentimento de apreensão e preocupação entre os empresários.”
Em agosto de 2023, o Fearless Fund, um fundo de capital de risco com sede em Atlanta que apoia startups fundadas por mulheres negras, foi processado pela American Alliance for Equal Rights, uma organização que contesta “distinções e preferências baseadas em raça e etnia”.
Os autores alegam que o fundo é discriminatório por excluir empreendedores que não sejam mulheres negras, violando assim a Lei dos Direitos Civis de 1866. Em fevereiro, a CEO do Fearless Fund, Arian Simone, afirmou a jornalistas que a empresa já perdeu “milhões de dólares” por causa do processo.
Devine relata que, após a decisão da Suprema Corte, empresas interromperam certas atividades de forma abrupta, com receio de retaliações na Justiça.
Algumas pararam de patrocinar eventos do Dia do Orgulho LGBT, enquanto outras dissolveram grupos de funcionários dedicados à diversidade, como fóruns de mulheres ou pessoas LGBT.
“Esse foi o primeiro impacto”, diz Devine. “Agora, especialmente nas grandes multinacionais, há um período mais reflexivo. As empresas estão tentando entender onde estão pisando e o que as outras estão fazendo.”
Devine destaca que há uma grande aversão à incerteza e ao fato de o cenário estar mudando: “Além disso, há uma forte preocupação com a possibilidade de práticas que eram legais até recentemente se tornarem ilegais”.
Outro receio é o aumento das reclamações sobre uma suposta “discriminação reversa”, com funcionários alegando exclusão de programas de desenvolvimento profissional por não fazerem parte de minorias.
“Também há a pressão dos acionistas, que já estão exigindo o fim dos programas de diversidade e inclusão. Isso já está acontecendo”, afirma Devine.
Ela cita o caso da Apple, que recentemente se defendeu contra essas pressões, argumentando que são uma interferência indevida nas estratégias da empresa.
A pesquisadora também aponta que as empresas temem exposição negativa nas redes sociais.
“Elas estão muito sensíveis a danos à reputação, campanhas online contra elas e até boicotes de consumidores”, diz Devine.
“No geral, a principal preocupação é o risco —e as empresas detestam riscos.”
‘POSTURA IDEOLÓGICA’
Além disso, Devine destaca a preocupação com possíveis impactos econômicos de empresas que não se alinharem às tendências anti-DEI.
“As empresas podem perder contratos ou ser impedidas de participar de licitações, o que pode ter um efeito significativo sobre seus negócios e reputações”, diz a pesquisadora.
“Há um risco comercial considerável envolvido.”
Por outro lado, muitas empresas continuam convencidas de que manter um ambiente de trabalho justo e inclusivo é essencial, segundo Devine.
“Na verdade, acredito que veremos uma mudança na linguagem: o termo ‘diversidade’ pode perder espaço, enquanto palavras como ‘inclusivo’ devem ganhar mais destaque.”
Luanny Faustino, sócia da consultoria Tree Diversidade e especialista em DEI e ESG (sigla em inglês para políticas corporativas ambiental, social e de governança), vê essas mudanças como reflexo de um alinhamento político de empresários com Trump.
“Quando Mark Zuckerberg [fundador do Facebook] diz que as empresas precisam de mais ‘masculinidade’ na liderança e, em seguida, retira os apoios à diversidade e inclusão na Meta, isso é uma postura ideológica”, afirma Faustino.
Segundo ela, muitas empresas usaram justificativas jurídicas e políticas para sustentar uma posição que já tinham.
“Empresas como a Meta não estão financeiramente vulneráveis”, diz Devine.
“Esse posicionamento não tem a ver com orçamento ou dificuldades financeiras. É uma escolha ideológica.”
Faustino destaca que, por outro lado, algumas companhias estão indo na contramão desse movimento e reafirmando seu compromisso com as políticas de DEI, como a Apple.
No Brasil, o empresário Luciano Hang, dono da Havan e aliado do grupo político do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), publicou um vídeo nas redes sociais para comentar sobre uma suposta agenda woke.
Ele afirmou acreditar que o desempenho profissional deve ser o único critério de contratação e promoção de colaboradores na empresa.
“Na Havan, sempre adotamos uma política baseada no desempenho e dedicação dos colaboradores, independentemente de raça, cor ou religião. Contratamos e promovemos aqueles que se destacam, que são bons no que fazem e têm vontade de trabalhar”, disse Hang.
A vice-presidente executiva de pessoas da Vale, Cátia Porto, também falou do assunto em uma publicação nas redes sociais, ao dizer que a “cultura woke” está perdendo espaço nas empresas.
“Ao contrário do DEI, que foca na diversidade como elemento-chave, há um novo movimento chamado MEI (Mérito, Excelência e Inteligência), que enfatiza uma combinação de mérito e altos padrões de desempenho, juntamente com habilidades intelectuais”, escreveu nas redes sociais.
A Vale afirmou, no entanto, que não mudou suas políticas e diretrizes de diversidade e inclusão.
TENDÊNCIAS GLOBAIS E PARA O BRASIL
Lígia Maura Costa, professora de ESG da Fundação Getúlio Vargas, observa que essa tendência de abandono de políticas de diversidade nas empresas podem chegar ao Brasil como “maré”, por pressão de investidores.
“Se o meu acionista não considera mais esses projetos como investimentos, vou reduzir estes custos”, diz Costa.
“Mas as empresas se esquecem do valor que essas iniciativas podem agregar.”
A professora ressalta que essa mudança de perspectiva pode ser prejudicial a longo prazo.
“Quando as empresas decidem interromper essas ações, elas enfrentam dificuldades para retomar o caminho em um futuro próximo”, diz Costa.
“Daqui a quatro anos, será muito mais complicado recuperar o que foi perdido.”
Costa também levanta a questão da autenticidade do compromisso das empresas com a diversidade.
“O que estamos vendo agora pode ser um teste para entender até que ponto as organizações realmente acreditavam nessas iniciativas”, diz a professora.
“Será que era uma crença genuína ou apenas uma tendência passageira?”
Luanny Faustino diz que ainda não observa essa tendência se repetir no Brasil e acredita que o país segue em direção oposta.
Sua consultoria, que atende mais de 250 clientes, entre eles Johnson&Johnson, BRF, Siemens e Pirelli, ainda não sentiu os impactos desse movimento dos Estados Unidos.
“Claro que não posso garantir que não acontecerá, mas, no presente, não vemos essa mudança”, diz a consultora.
Ainda assim, ela avalia possíveis reflexos.
“Há lideranças que faziam o que todo mundo estava fazendo, sem nunca conseguir entender de verdade os pilares de diversidade, equidade, e inclusão”, diz Costa.
“Neste caso, elas podem se utilizar dessa brecha para realmente desacelerar seus programas. Mas as que entenderam todas essas mudanças, não.”
Faustino lembra que, diferentemente dos EUA, o Brasil tem respaldo legal para ações afirmativas, como a Lei das Cotas e a Lei de Igualdade Salarial.
Além disso, o governo Lula tem fortalecido políticas públicas na área.
O McDonald’s cancelou as ações de diversidade e inclusão no exterior, por exemplo, mas a Arcos Dourado, que administra a marca no Brasil, informou que continua com todas as ações na área.
Na Europa, ressalta a consultora, a tendência é inversa, com crescente pressão regulatória por ESG e sustentabilidade.
Esse cenário, diz Devine, cria desafios para empresas globais: “Elas temem que investigações nos EUA questionem suas práticas em outras regiões”.
Texto originalmente publicado aqui.