O fim do contrato de concessão do aeroporto de Viracopos (SP), um desfecho que tanto concessionária quanto o governo não desejavam, envolve um passivo bilionário ligado a desapropriações de imóveis no entorno do terminal em Campinas.
Os desentendimentos e disputas sobre o assunto escalaram a tal ponto que a confusão foi parar em uma corte de arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, que dará a palavra final sobre o tema.
A Folha teve acesso a detalhes das defesas técnicas apresentadas em março pela concessionária ABV (Aeroportos Brasil Viracopos) e pela Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). A divergência é total.
O aeroporto de Viracopos foi concedido em 2012 para a ABV, uma sociedade formada pela estatal Infraero, que detém 49% de participação, e a empresa ABSA, dona dos demais 51%.
Pelo contrato de concessão, o governo assumia o compromisso de, até a assinatura do contrato, em 2013, fazer a desapropriação de toda a área do empreendimento, dentro de um “prazo razoável”. Isso significava que todas as áreas com decreto de utilidade pública vigente à época do leilão tinham de ser indenizadas, para liberar o espaço não só para o aeroporto, mas demais estruturas, como terminais de carga, pistas e espaço para hotéis e lojas, entre outros.
O problema é que isso não só deixou de ser feito, como ainda há centenas de casos sem solução até hoje, 13 anos depois da concessão. No documento entregue à corte de arbitragem, a defesa da ABV afirma que analisou um total de 2.008 processos de desapropriação, com base em uma planilha elaborada pela Infraero.
Desse volume total de processos, 421 seguem ativos até hoje, incluindo processos em fase de julgamento, execução ou recurso. Há outros 1.544 registrados como encerrados, mas isso não significa que as áreas foram entregues.
Em termos de área efetivamente livre, a ABV declarou que os processos encerrados abrangem apenas 23,8% do total da área do aeroporto. Os processos ainda ativos representam 13 milhões de m². Na prática, mais da metade de todo o terreno aeroportuário não está regularizado.
A concessionária afirma, ainda, que a falta de recursos da Infraero, sua sócia, atrelada ao uso de laudos de valores de indenizações desatualizados, além da inércia nos processos, resultaram em caos no andamento dessas operações. Em suas contas, mais de R$ 1 bilhão de perdas de seu contrato estão ligados à frustração de negócios por causa da falta de desapropriação dos imóveis.
O relatório informa que, se a União tivesse agido com celeridade e compromisso, todas as áreas poderiam ter sido entregues até 2013 e hoje não haveria uma disputa arbitral.
A Anac apresenta dados divergentes da concessionária. Segundo a agência, a concessão previa a desapropriação de 4.168 imóveis (4.035 urbanos e 133 rurais), somando cerca de 17,6 milhões de m². O órgão afirma que 1.961 ações foram ajuizadas e que 79% dos processos estavam concluídos até janeiro deste ano.
A Anac diz também que não pode ser responsabilizada por morosidade dos tribunais e aspectos sociais que dificultam o processo de desapropriação.
“A morosidade no processo de desapropriação no Brasil não pode ser compreendida apenas como falha ou desídia dos órgãos públicos envolvidos, mas como reflexo de um sistema fundiário historicamente desorganizado, da escassez de registros atualizados e da lentidão estrutural do Judiciário”, diz a agência. “Trata-se de uma característica recorrente em empreendimentos de grande porte no país.”
A Anac admite que é “possível constatar que a integralidade das desapropriações não se concluiu nos primeiros anos da concessão”, mas acrescenta que “é preciso reconhecer que o volume e a natureza dos obstáculos enfrentados —jurídicos, fundiários e sociais— tornam o prazo decorrido compatível com a razoabilidade exigida contratualmente”.
Em sua defesa, o órgão regulador argumenta ainda que “não é incomum que os processos se estendam por 10 a 15 anos”. Por isso, “o percentual de 79% de processos concluídos até 2021 revela desempenho compatível —e até superior— ao observado em outros projetos nacionais de infraestrutura”.
Em nota à reportagem, a ABV declarou que “o descumprimento do contrato por parte da Anac, que não entregou o terreno previsto no edital de licitação em 2012, inviabilizou o projeto de exploração imobiliária de Viracopos, conhecido como Aerotrópole, prejudicando a geração de receitas não tarifárias e, consequentemente, provocando desequilíbrio financeiro no contrato de concessão”.
Segundo a empresa, o valor da outorga oferecida no leilão pela ABV foi calculado com base na exploração de um polo de logística e infraestrutura de carga, além de hotéis, centro de eventos, entre outros.
“Nada disso se concretizou. Dos mais de R$ 3 bilhões em reequilíbrios reivindicados pela ABV por perdas de receita causadas pelo poder concedente, mais de R$ 1 bilhão se refere apenas à perda pela não desapropriação dos imóveis do sítio aeroportuário. A Anac não conseguiu desapropriar nem 20% dos 17 km2 da área do projeto, frustrando a perspectiva comercial da entrega”, afirmou a empresa.
A Anac afirmou, por meio de nota, que o contrato previa a imissão imediata na posse do sítio original do aeroporto de 8,54 km² e que as áreas desapropriadas após a concessão teriam a posse “gradualmente transferida à concessionária mediante aditivos, conforme previsão contratual”.
“Foram celebrados, até o momento, 18 aditamentos nesse sentido, num total de 3.336 imóveis desapropriados pela Infraero desde o início da concessão. O contrato não previu que tais áreas estariam desocupadas no ato de sua assinatura, corroborando o recebimento consensual e gradativo das áreas pela concessionária até 2019”, afirmou.
A agência afirmou ainda que, em sentença parcial, a corte arbitral já decidiu por “afastar o entendimento de que a disponibilização das áreas desapropriadas pelo poder concedente era exigível imediatamente após o início da vigência da concessão”.