Para a professora Nadya Araújo Guimarães, da USP (Universidade de São Paulo), o Brasil precisa começar a cuidar de quem cuida.
Ela diz que, apesar da criação de estatutos que garantem os direitos de crianças, adolescentes e idosos, leis existentes desde a redemocratização e que são hoje referências internacionais, falta olhar para a outra ponta do problema.
“Mas o foco estava em quem? No beneficiário. Os provedores de cuidado, desses ninguém cuida”, diz a pesquisadora de sociologia do trabalho e coordenadora-geral do projeto internacional “Who Cares?” (Quem se importa?, em português), do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Os anos de pesquisa, que envolvem seis países em torno do mote “reconstruindo o cuidado em um mundo pós-pandêmico”, serão apresentados em um colóquio na USP entre esta segunda-feira (14) e quarta-feira (16).
Nadya diz que o conceito de “crise do cuidado” surgiu em países desenvolvidos a partir da percepção do descompasso entre a oferta e a demanda por cuidadores, o que teria a ver com a entrada das mulheres no mercado de trabalho. No Brasil, ela argumenta, o panorama é diferente.
“As mulheres negras têm uma presença na busca de trabalho muito significativa e muito anterior à das mulheres brancas”, afirma. São essas mulheres que se tornaram a força de trabalho de cuidado, diz ela, e que vivem muitas vezes sem regulamentação profissional.
“Você não tem nenhuma regulação com respeito à formação e à certificação profissional das cuidadoras”, diz. Segundo a pesquisadora, um estudo que acompanhou as trajetórias daquelas que fizeram o curso da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para cuidadoras no Rio de Janeiro, “dos melhores do Brasil”, mostrou que o risco de desemprego caiu notavelmente.
O cuidado só começa a aparecer como objeto de estudo na sociologia nos anos 1990, embora já houvesse teóricas feministas que discutissem, por exemplo, o trabalho não remunerado feminino antes. Por que demorou tanto para haver interesse nessa questão?
Realmente, o feminismo foi fantástico em sublinhar essa coisa do trabalho não remunerado das mulheres. Essa agenda estava inteiramente posta desde os anos 1970, com muita força, mas o interessante é que “cuidado” não aparece como uma categoria de enlace.
Quando essa categoria aparece, o que a gente ganha? Por que a gente precisa disso, se já vinha falando desses assuntos antes? Eles caminhavam em vias paralelas: o trabalho não remunerado das mulheres, a entrada das mulheres no mercado de trabalho, o envelhecimento. Quando esse campo se constitui, ele interliga essas várias discussões. Esse é o grande atrativo.
Nas políticas públicas, essa categoria de “enlace” demorou ainda mais para ser utilizada —embora políticas de cuidados, como creches, existam há muito mais tempo. Na prática, qual a diferença de pensar essas políticas sob esse guarda-chuva do cuidado?
A palavra-chave é “transversalidade”. O problema das creches não é um problema só das creches, é um problema que é das escolas, mas é um problema também das mulheres e do modo de sua inserção no mercado de trabalho, então, requer ação concertada.
O que é que essas políticas e sistemas de cuidado resgatam? A ideia de que o cuidado é um bem público. Por mais que a Constituição diga que o cuidado é um problema da família, e, se a família não funciona, o Estado entra, a gente está vendo na prática que não pode ser assim.
Não é somente um problema de crianças menores, de idosos, de pessoas descapacitadas. A pandemia mostrou isso. Todos nós, em algum momento da vida, dependemos de cuidado e provemos cuidado.
Já que falamos sobre a pandemia, foi nessa época que cresceram os debates sobre uma “crise do cuidado”. O que a sra. entende por “crise do cuidado”?
A gente tem uma carência de oferta de provimento de cuidado, porque as senhoras que estavam em casa, calmas, quietinhas, que não trabalhavam, agora resolveram ir trabalhar, né? E a população envelhece.
Então as pessoas estão vivendo mais, e as mulheres que estavam em casa estão no mercado de trabalho. Isso chamou atenção para essa ideia de crise no sentido de escassez no provimento. Isso foi o tom com que a discussão entrou nos países do Norte Global.
E como fica o Brasil nessa ideia de “crise do cuidado”?
As nossas mulheres trabalhavam muito para outras mulheres, desde muito tempo. Existe uma racialização na entrada no mercado de trabalho que é notável. As mulheres negras têm uma presença na busca de trabalho muito significativa e muito anterior à das mulheres brancas.
Há um acionamento de uma força de trabalho feminina e negra, especialmente nas tarefas de cuidado, desde sempre. Antes escravizado, depois mercantilizado, mas sempre foi trabalho.
Além disso, no Norte Global a entrada das mulheres no mercado de trabalho anda de braços dados com a externalização do cuidado, com as creches, as escolas integrais, os centros de acolhimento de idosos.
Não é o caso entre nós. “Desfamiliarizar” não significa sempre externalizar, porque estamos muito aquém quanto às creches, por exemplo. Você desfamiliariza criando um mercado ao interior da casa. Quem tem dinheiro, contrata a faxineira, a cuidadora, o jardineiro, o motorista. E existe um mercado imenso.
É uma outra configuração, com suas desigualdades, mas não é possível falar de uma crise de cuidado da mesma forma que no Norte Global.
Ao mesmo tempo, a necessidade de cuidado desfamiliarizado não é exclusiva das classes altas no Brasil. Como isso entra na questão?
Quem não tem dinheiro usa as “casas de tomar conta”. Eu tenho o meu filho, mas eu volto do trabalho muito depois que ele volta da escola. Então eu peço para a minha vizinha buscar e ficar com ele.
Aí outra vizinha diz: “Já que você tá cuidando de fulana, você não pode pegar o meu também?”. De repente, ela se descobre cuidando de cinco, e diz: “eu vou precisar de alguma ajuda, porque os meninos precisam comer alguma coisa”. Aí já começa a ter uma circulação de bens e monetária, e aquilo que era uma relação de ajuda entre amigas vira um pequeno negócio.
O mercado vai entrando pelas frestas e vai se instalando porque o Estado está ausente, porque a creche não tem um horário adequado. Se você não tem uma política transversal, você não consegue alinhar o horário da escola e do trabalho, por exemplo.
Como o Brasil pode implementar essas ações transversais de cuidado?
O caso do Brasil é um desafio, porque a gente criou estruturas institucionais sólidas, como o SUS (Sistema Único de Saúde), e o Suas (Sistema Único de Assistência Social).
Ou seja, quando você pensa uma política de cuidado, no caso brasileiro, você não pode competir com as estruturas da educação, da saúde e da assistência, que são um ganho da redemocratização.
Isso é diferente, por exemplo, do caso do Uruguai. No caso do Uruguai, você constituiu um Sistema Nacional Integrado de Cuidado onde a política de cuidado puxava as outras instâncias, articulando-as. Muito mais fácil, porque você estava partindo de uma estrutura de gestão pública onde você não tinha esses pilares. A existência desses pilares é um ganho, mas é um desafio para construir uma política transversal.
Como a sra. avalia a Política Nacional de Cuidado?
Ela tem duas coisas que eu acho que são muito importantes. Uma é o princípio de proteger quem cuida. A partir da redemocratização, nós tivemos muito cuidado com quem precisa de cuidado. Todo o nosso esforço foi proteger a criança e o adolescente e o idoso. Fizemos estatutos lindos, saímos lindos na foto internacional.
Mas o foco estava em quem? No beneficiário. Os provedores de cuidado, desses ninguém cuida.
Você não tem nenhuma regulação com respeito à formação e a certificação profissional das cuidadoras. Tem um estudo que acompanhou trajetórias de mulheres no Rio de Janeiro que fizeram o curso da Fiocruz para cuidadoras, que é dos melhores do Brasil, e o risco de desemprego cai notavelmente.
O outro ponto forte é o do trabalho não remunerado. É preciso ter “política de respiro”, porque tem uma dimensão emocional de sofrimento, de perda de vida pública para quem cuida. As políticas de respiro, em que um agente público vai lá ficar com o idoso para a mulher que cuida sair um pouco, até para fazer nada, são fundamentais.
Desafio é dotar orçamentariamente isso. Porque bonito é a letra, mas ela não é a ação. Há um desafio que é a disputa pela parcela do orçamento que cabe a essa política. Outro desafio é como isso chega no nível municipal, porque a coisa não acontece no gabinete em Brasília, é na periferia, no município.
RAIO-X | Nadya Araújo Guimarães, 75
Salvador, 1949. Professora do departamento de Sociologia da USP e pesquisadora o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Doutora em sociologia pela Universidade Nacional Autônoma do México. Autora dos livros “Care and Pandemic: a Transnational Perspective” (cuidado e pandemia: uma perspectiva transnacional, Brill, 2024) e “O Gênero do Cuidado. Desigualdades, Significações, Identidades” (Ateliê, 2020), entre outros.