Carla Peron Goulart, a primeira brasileira à frente da divisão médica global da Philips, não acredita em receitas para o sucesso. E a trajetória dela até o cargo de diretora reflete a ideia de que caminhos diversos podem levar a altos cargos.
Goulart entrou no curso de medicina em Jundiaí com o mesmo espírito de vários alunos. “Sempre foi um sonho, sempre tive aquela coisa desde menina de que queria ser médica quando crescesse”, diz.
No começo da graduação, Goulart viveu uma gestação não planejada. A primeira filha da médica nasceu no final do segundo ano da escola de medicina e a carreira da hoje executiva se pautou sempre na obrigação de sustentar a criança.
Goulart avalia que deu sorte —”ela foi uma criança bastante fácil de gerenciar”— e contou com uma rede de apoio, que incluía o então parceiro e amigos, inclusive os de faculdade.
“Eu sempre brinco que muitos dos meus colegas saíam da faculdade e iam festejar, aproveitar a vida no bar. Eu ia para casa cuidar da minha filha”, diz. Ela faz uma ressalva ao afirmar que esse tempo do cuidado servia também para aprofundar os estudos.
Ao terminar a graduação, Peron saiu de Jundiaí rumo a São Paulo para seguir os estudos. “Eu tinha uma criança de quatro anos, então estava tentando buscar formas alternativas de receita além da bolsa da residência.”
Com esse espírito, entrou no mundo da pesquisa clínica. Ela conta que o hospital em que ela fazia residência estava conduzindo estudos multinacionais para a vacina de HPV. Passou a residência como coordenadora do grupo e a pesquisa culminou no registro do imunizante no Brasil.
“Descobri o mundo da indústria farmacêutica e a relação dos médicos com a indústria”, diz. “Quando você entra na faculdade, é difícil ter essa visão. A gente acha que vai se formar e abrir o consultório para atender pacientes diretamente.”
Depois da residência, Peron entrou para a vida acadêmica, que conciliou com a prática médica —fez mestrado, trabalhou em posto de saúde, abriu um consultório ginecológico. A pesquisa clínica continuava, embora em segundo plano. Ela fazia aqui e acolá algumas consultorias para farmacêuticas.
Muita água rolou até que ela voltasse efetivamente para o ramo. Casou-se e teve uma segunda filha, oito anos mais nova que a primeira.
Dez anos depois, veio uma proposta para trabalhar no Aché. “Fiquei super dividida porque pensei que deixaria a medicina”, diz. “A gente tem essa visão de que se você deixa de clinicar, deixa a medicina.”
Ao mesmo tempo, ela viu vantagens na rotina oferecida pela indústria. Peron conta que, quando estava mais dedicada à clínica, chegou a perder a primeira comunhão da filha porque foi chamada para uma emergência.
“Quando eu, meu marido, ela e a minha bebêzinha de um ano na época, estávamos indo pra igreja, me ligaram do hospital. Deixei os três na igreja e fui. Eu corri com a cesárea. Normalmente eu tenho um tempo com a família depois, com a mãe. Mas eu acabei a cirurgia e voltei para a igreja correndo. Quando eu cheguei lá, eles estavam nas palmas.”
A sensação foi de frustração, ela conta, e diz que naquele momento teve clareza de que não estava dando conta de fazer nenhuma das duas coisas —a medicina e a maternidade— com a dedicação que gostaria.
Ao passo que as filhas diziam que ela nunca estava lá, a caçula também afirmava que a ausência da mãe não era algo negativo. Segundo a médica, a filha entendia como uma versão diferente da maternidade, o que mostrou a ela que mulheres podem fazer outras coisas além de serem mães.
A decisão foi difícil, mas ela abraçou a indústria. Continuou com a prática clínica duas vezes ao mês, “para manter a habilidade manual do centro cirúrgico e poder fazer cirurgias”, e começou uma carreira no outro lado do balcão.
Da farmacêutica, onde ficou por quatro anos, ela migrou para a área de “medical devices”, dedicada aos equipamentos tecnológicos. E lá ficou até hoje.
Peron passou por uma empresa nos Estados Unidos, a Medtronic, onde trabalhou por quase oito anos. Crescidas, as filhas de 29 e 21 ficaram nos EUA. Em setembro de 2023, a médica partiu para Amsterdã (Holanda), para assumir o atual cargo na Philips.
Para ela, é importante que mulheres estejam à frente da inovação. “Temos um olhar diferente. Nem melhor, nem pior. É só diferente”, diz.
Ela diz que seu estilo de liderança é marcado pela paixão e pela transparência. “Eu sou o que sou”, afirma. A novidade que traz à Philips, afirma, é marcada por sua forma de agir.
“Acho que não é o tipo de gestão que a companhia estava acostumada, até porque é uma companhia holandesa, um perfil um pouco mais reservado. E eu sou isso aí que você está vendo, né? Aquela brasileira que mexe a mão, que fala muito, que é muito transparente na forma de trazer a mensagem para a mesa.”
Para a médica, o Brasil tem potencial, mas que precisa ser explorado. “O nosso país ainda tem uma divisão muito grande entre o mercado premium de saúde e o mercado servido pelo SUS [Sistema Único de Saúde]”, diz.
“Nós somos um dos poucos países do mundo que tem um sistema de saúde universal. Isso tem um valor imensurável. A gente só tocou a superfície da oportunidade de desenvolvimento de soluções locais. Mas ela vai acontecer. E eu acho que a gente poderia, inclusive, aproveitar esse momento de crise e mostrar lá fora que o Brasil pode fazer muita coisa por si só.”