“Achei que o pessoal estava passando um pouco dos limites. Estavam ficando um pouco nervosos, um pouco assustados.”
As palavras do presidente dos EUA, Donald Trump, na tarde de quarta-feira (9), após anunciar uma trégua de 90 dias na guerra comercial —para todos os países, exceto a China— não poderiam ser mais diferentes do tom adotado pela manhã.
Logo cedo, Trump usava as redes sociais para garantir que “vai dar tudo certo” e se dirigia a seguidores e investidores com um categórico “FIQUEM TRANQUILOS!”, chegando até a afirmar: “É UM ÓTIMO MOMENTO PARA COMPRAR!!!”.
Apenas Trump sabe ao certo o que o fez mudar de ideia entre a manhã e a tarde. Mas, para um grande número de analistas, a razão é clara: o enfraquecimento dos títulos do Tesouro americano.
“Durante muito tempo nos perguntamos o que faria Trump mudar de opinião. Seriam seus assessores? O Congresso? O sistema judiciário? Os líderes empresariais? No fim das contas, foi o mercado de títulos”, disse no programa Newsnight, da BBC, o economista Mohammed El Erian, conselheiro-chefe da Allianz e um dos maiores especialistas em títulos públicos do mundo.
Durante seu primeiro mandato, Trump sempre esteve atento à reação dos mercados às suas decisões políticas. Se a bolsa reagia bem, ele avançava. Se caía, ele recuava.
Esse padrão, no entanto, deixou de funcionar no segundo mandato —para surpresa de muitos analistas e investidores.
O anúncio de que imporia uma tarifa geral de 10% a praticamente todos os países (com exceções surpreendentes como a Rússia), incluindo aliados históricos dos EUA, além de tarifas adicionais e muito elevadas a dezenas de outros, fez as bolsas despencarem.
Mesmo assim, Trump —numa postura quase como “Nero vendo Roma em chamas”— parecia inabalável diante da catástrofe nos mercados, que em poucos dias viu trilhões de dólares evaporarem.
Na quinta-feira (10), os principais índices acionários dos EUA registraram mais um dia de queda: o S&P500 (-3,46%), o Nasdaq Composite (-4,31%) e o Dow Jones (-2,50%). No Brasil, o Ibovespa fechou com perdas de 1,12%, e o dólar teve alta de 0,91%, sendo cotado a R$ 5,897.
Mas o nervosismo acabou contaminando o mercado de dívidas. E aí, o medo foi real.
Assim como em 2022, quando o colapso do mercado de títulos forçou a então primeira-ministra britânica Liz Truss a recuar de seus controversos planos fiscais —e, por fim, a renunciar ao cargo após apenas 45 dias—, os títulos do Tesouro americano foram a gota d’água. E, segundo os analistas, fizeram Trump enfim ceder.
Mas, afinal, o que são exatamente os títulos do Tesouro? Como funciona esse mercado? E por que o mercado de dívida pública dos EUA é tão crucial para o mundo?
O QUE SÃO OS TÍTULOS DO TESOURO?
Os títulos são instrumentos de dívida emitidos por empresas ou por países para conseguir financiamento.
Quando quem emite é um país, esses títulos são conhecidos como títulos do Tesouro ou títulos públicos.
No caso desses títulos, os investidores —que podem ser empresas, governos ou pessoas físicas como você ou eu—, ao comprar um título emitido por um Estado, estão, na prática, emprestando dinheiro a esse governo para que ele possa financiar seus gastos, como, por exemplo, pagar servidores públicos ou construir estradas.
Esse empréstimo de dinheiro é feito por um período acordado (5, 10, 30 anos) e em troca de uma taxa de juros (também conhecida como “rendimento”) previamente definida, que é paga anualmente e chamada de “cupom”.
Se, por exemplo, você investir R$ 10 mil em títulos com vencimento em dez anos e taxa de 3%, a cada ano o Estado ao qual você emprestou o dinheiro pagará R$ 300. E, ao final desses dez anos, você receberá de volta o valor investido originalmente: R$ 10 mil.
Pode ser que você tenha investido uma quantia em títulos do Tesouro com vencimento em dez anos, mas precise recuperar esse dinheiro antes —talvez porque decidiu comprar uma casa ou teve um imprevisto e precisa de liquidez.
COMO É O MERCADO DE TÍTULOS
Nesse caso, você pode recorrer ao chamado mercado secundário, onde os títulos são comprados e vendidos, e onde seus preços variam de acordo com a oferta e a demanda.
Se muitos investidores estiverem interessados em comprar títulos do Tesouro de um país, o rendimento (ou juros) pago por eles tende a cair —o que permite ao país se financiar por um custo menor.
Por outro lado, se os investidores perderem o interesse nesses títulos e começarem a vendê-los, o país terá que oferecer taxas de juros mais altas para atrair compradores —o que torna sua dívida mais cara.
Os títulos do Tesouro de economias estáveis são considerados investimentos de baixo risco, pois não se espera que esses países enfrentem problemas graves a ponto de não conseguirem honrar seus pagamentos.
“O risco de um título está no emissor, ou seja, no fato de ele não te pagar. Se você compra um título da vendinha da esquina, o risco de não receber é muito alto. O risco de não receber de um Estado como os Estados Unidos é muito baixo”, explica à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, Javier Molina, analista da plataforma de investimentos eToro.
Os títulos do Tesouro dos EUA —assim como os de outros países com economia forte— costumam ser vistos como investimentos de refúgio, para onde muitos investidores direcionam seu dinheiro em momentos de crise nos mercados, como quedas nas bolsas de valores.
No entanto, após o anúncio de Donald Trump sobre uma série de tarifas extremas que ele pretende impor a quase todos os países, as bolsas caíram —e, em vez de atrair investidores, o mercado de títulos também começou a perder compradores.
“Os títulos deveriam ter um bom desempenho em tempos de turbulência, à medida que os investidores buscam segurança, mas a guerra comercial de Trump está agora minando o mercado de dívida dos EUA”, disse à BBC Laith Khalaf, chefe de análise de investimentos da AJ Bell, empresa britânica que fornece plataformas de investimento.
COMO A CONFIANÇA AFETA O MERCADO DE TÍTULOS
O mercado de títulos “é como um termômetro da confiança na economia”, explica Molina.
Quando há muitas compras, isso é um sinal de confiança.
Mas, se os investidores começam a vender —como aconteceu na última semana—, o preço dos títulos cai. E, por isso, a rentabilidade (ou seja, os juros) sobe, já que preço e rendimento se movem em sentidos opostos.
“Se, de repente, Trump aparece e bagunça tudo, pode ser que você, com medo, decida vender seu título e ir embora. E, ao vender, o que acontece com os juros? Eles sobem, porque o preço cai. Se todo mundo começa a vender e cada vez menos gente quer comprar, você precisa vender mais barato para conseguir um comprador”, explica o analista.
Nos últimos dias, a taxa de juros (ou rendimento) dos títulos do Tesouro dos EUA com vencimento em dez anos aumentou de forma drástica —passou de 3,9% para 4,5%. Ou seja, uma alta de 15% em apenas alguns dias.
Os títulos, explica Javier Díaz-Giménez, professor de Economia da escola espanhola de negócios IESE, “são a forma mais imediata que o mercado tem de dizer ao setor público: ‘desse jeito, com essas políticas que você está propondo, eu não brinco – porque isso vai contra os meus interesses'”.
Segundo Mohammed El Erian —ex-CEO da americana Pimco, uma das maiores gestoras de títulos do mundo – uma das razões para o aumento expressivo do custo da dívida dos EUA foi a “erosão” da percepção dos títulos americanos como um porto seguro.
Outro fator que pesou foi a preocupação com o impacto que as tarifas anunciadas por Trump poderiam ter sobre a inflação e sobre o orçamento do governo dos EUA.
Para El Erian, Trump não mudou de opinião apenas por causa da volatilidade nos preços dos títulos.
“Ele mudou porque começaram a surgir disfunções no mercado. E, quando você começa a ver disfunções no mercado, corre o risco de cair numa falha institucional, numa recessão…”, analisou no programa Newsnight.
Assim, conclui El Erian: “Foi o mercado de títulos que o fez mudar de ideia… por enquanto.”
QUAL O IMPACTO NA ECONOMIA E PARA A POPULAÇÃO?
“O cidadão comum não é afetado diretamente pelo mercado de títulos, mas sim indiretamente”, aponta Javier Díaz-Giménez.
O professor do IESE lembra que “foram os títulos que derrubaram, por exemplo, a primeira-ministra britânica Liz Truss, porque ela propôs um plano fiscal que o mercado considerou incompatível com a manutenção do preço dos títulos. E agora foi o mercado de títulos que fez Donald Trump recuar.”
Ou seja, o impacto —embora indireto— pode ser muito real.
Os Estados Unidos, lembra também Javier Molina, “precisam refinanciar quase US$ 9 trilhões em dívida este ano, por isso Trump queria que as taxas de juros caíssem”.
Em outras palavras: o Tesouro dos EUA precisa pagar o que já deve aos investidores, mas, ao mesmo tempo, continuar financiando os gastos do governo —o que significa emitir e colocar novos títulos no mercado.
“Se o Tesouro emitir novos títulos com juros mais altos do que os que estava pagando até agora, terá feito um mau negócio – porque estará pagando mais, vai custar mais e, portanto, isso se traduzirá em mais impostos, já que o dinheiro precisa sair de algum lugar”, explica o analista.
Ou seja, quem acaba pagando a conta são os cidadãos —seja por meio de impostos novos ou mais altos, seja sentindo os efeitos de menos investimento público em áreas que normalmente são responsabilidade do Estado, como infraestrutura.
Mas não para por aí: essa desconfiança e volatilidade no mercado de títulos acaba se espalhando para o restante do sistema financeiro, com novas consequências para a população.
Se o rendimento dos títulos dispara, mesmo que o Federal Reserve (o banco central americano) decida não aumentar os juros, os bancos podem optar por aumentar as taxas dos financiamentos imobiliários, por perceberem mais risco no ambiente econômico.
“O aumento da incerteza encarece o crédito, porque agora você precisa incluir cenários mais estressantes na sua análise de risco”, argumenta Díaz-Giménez.
A crise também pode afetar os fundos de pensão, a maioria com investimento na dívida pública, acrescenta o professor de Economia:
“Qualquer um que tenha, direta ou indiretamente, dívida pública na carteira será impactado, porque agora esses títulos valem menos.”
Ele lembra que todos os fundos de pensão nos EUA sofreram perdas com a queda dos preços dos títulos públicos:
“Então, se alguém se aposentar agora e quiser sacar seu dinheiro, terá menos do que teria alguns meses atrás.”
Nos mercados internacionais, o mesmo se aplica.
Se a confiança na economia dos EUA cair, os mercados internacionais podem parar de emprestar dinheiro para o país —o que seria um grande problema, considerando que cerca de 70% da dívida dos EUA está nas mãos de estrangeiros.
E um dos maiores detentores dessa dívida é justamente o país mais afetado pela guerra comercial de Trump: a China.
Estima-se que a China tenha cerca de US$ 759 bilhões (R$ 4,4 trilhões) em títulos da dívida americana.
Um dos temores da economia dos EUA, segundo Javier Molina, é que a China decida vender esses títulos se Trump endurecer ainda mais sua posição contra o país.
Quanto mais títulos a China vendesse, mais os juros subiriam. “Isso tornaria tudo mais caro para os cidadãos, o Estado se financiaria a um custo mais alto, precisaria aumentar os impostos para arrecadar e manter os gastos públicos, e por aí vai”, diz Molina.
Díaz-Giménez conclui com um alerta. Quando você encurrala o seu adversário —”que obviamente é a China (todo o resto é cenário, irrelevante)— você não sabe como o outro vai reagir. Entramos num mundo onde o futuro se torna muito mais incerto”.
Texto originalmente publicado aqui.