Belmiro Gomes, 53, tinha quando criança o sonho de ficar preso à noite em um supermercado. “Iria poder comer o que eu quisesse”, diz ele, que enfrentou a pobreza na infância e adolescência. Como filho do meio de uma família de três irmãos, começou a trabalhar cedo, aos 9 anos, por causa da doença autoimune do pai (espondilite anquilosante), que o deixou inválido por sete anos. A mãe precisara deixar o emprego para cuidar do marido.
Foi sorveteiro e boia-fria durante três colheitas de algodão em Maringá (PR), onde cresceu. Aos 13, teve a carteira assinada, como office-boy de uma varejista de eletrodomésticos. Interessado em tecnologia, fez curso de Cobol e acabou contratado por uma rede de supermercados para implantar o sistema de notas fiscais. Aos 16, tornou-se digitador do Atacadão (que em 2007 passaria ao controle do Carrefour).
Por 22 anos, trabalhou no agora rival. Nesse período, pode realizar o sonho de criança, mas de um jeito enviesado –a contagem de inventário exigia dos funcionários passar madrugadas inteiras dentro da loja.
Hoje CEO do Assaí, uma das maiores varejistas do país, com faturamento anual na casa dos R$ 80 bilhões, Belmiro Gomes recebeu a Folha na sede do grupo, na avenida Aricanduva, zona leste da capital paulista. A sede fica junto à loja de maior faturamento da rede, com mais de 7.000 m² de área de vendas, por onde passam cerca de 2,5 milhões de consumidores ao ano. “Varejo você acompanha assim, sentindo o pulso.”
Na mira do executivo, está a expansão para novas categorias de produtos, como a de medicamentos sem prescrição, cuja venda no varejo alimentar é proibida no país. “É muito provável que nós consigamos reduzir muito os preços dessa categoria, do mesmo jeito que hoje somos os maiores vendedores de pneus no Brasil.”
Por que você acredita que casos de mobilidade social como o seu são tão raros? É preciso muita persistência, além de estar no lugar certo, na hora certa. Eu sempre procurei ser curioso, aprender, me esforçar, entregar resultado, além de ser bom em trabalhar com pessoas, que fazem a diferença de verdade. O cliente pode não saber quem é o gerente, mas com certeza vai passar por uma operadora de caixa. Um bom atendimento ou um mau atendimento pode anular ou corroborar os esforços de localização, de construção de marca e de preço de uma rede.
Por que você acredita que o modelo de atacarejo cresceu tanto no país? No início, era um modelo muito eficaz para vender a preço baixo, mas a experiência de compra era o calcanhar de Aquiles: lojas sem ar-condicionado, iluminação precária, sortimento muito reduzido. Nos últimos 10 anos, procuramos oferecer uma experiência de compra mais agradável. Quem vem de classes sociais baixas sabe que, muitas vezes, o momento da compra do mês no supermercado é o mais importante de muitas famílias, é o seu lazer. O atacarejo foi criado e só existe nestes moldes no Brasil: uma loja que atende pessoas físicas e jurídicas ao mesmo tempo, usando o volume de venda para diluir custo e manter preço baixo.
O atacarejo se sofisticou e hoje tem lojas mais confortáveis, além de padaria, açougue e hortifruti. Ainda assim é possível oferecer preços mais baixos? Hoje as classes A e B respondem por 44% da nossa venda ao consumidor. Alguns clientes nossos iam a outros estabelecimentos comprar esses itens. Com essa mudança no perfil das lojas, que quase dobraram o número de itens, conseguimos aumentar as vendas e manter o mesmo nível despesas de 2011. Além disso, só 20% a 30% do nosso sortimento passa pelos centros de distribuição; a maior parte dos produtos vem direto da indústria para a loja. Isso evita custos logísticos e capital de giro para manter estoques.
Como crescer o patamar de vendas diante da escalada da inflação nos alimentos? Pressão na negociação com fornecedores e aposta em marcas de primeiro preço –temos percebido a substituição de marcas mais caras por outras mais baratas. A indústria também reduziu muito o tamanho das embalagens. Se você quiser saber a renda da população de um país, vá ao supermercado e olhe o tamanho da embalagem: quanto maior, maior a renda. Eu já visitei alguns países em que o sabão em pó era vendido em sachê de 30 gramas, mas em outros havia pacote de 10 quilos. Aqui temos observado embalagens menores, principalmente em itens de indulgência, como chocolates, e alguns de higiene e limpeza. Mesmo no Brasil existe essa diferença: no Nordeste, embalagens de café e margarina são menores do que em São Paulo.
O quanto a Selic a dois dígitos atrapalha os negócios? É um remédio amargo, um Benzetacil, mas infelizmente necessário para conter a inflação. Neste patamar, a Selic reduz o nível de investimento das empresas. Você destina boa parte do Ebitda [lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização] para pagar juros. As quatro companhias de capital aberto do varejo alimentar –Assaí, Carrefour, Grupo Pão de Açúcar e Grupo Mateus– venderam R$ 250 bilhões em 2024, mas tiveram menos de 1% de lucro líquido. O pagamento de juros é duas vezes maior do que o lucro. Aí você reduz investimento: iríamos abrir 20 lojas, mas serão 10. Fora isso, tira o poder de compra da população, as pessoas se endividam.
O Assaí parcela vendas? Apenas no Nordeste e em algumas categorias de bens duráveis, como pneus. Não em alimentos: seria como almoçar em um restaurante e pagar em três vezes. Isso contribui para o endividamento da população.
Você foi o primeiro executivo do setor a chamar a atenção para o impacto das bets no varejo. Qual o tamanho do estrago das apostas online sobre o varejo alimentar? É consistente. Jogo pode ser nocivo, principalmente o jogo descontrolado. Eu tenho observado entre os próprios colaboradores uma grande quantidade de pessoas que se endividam por causa de apostas online. E de uma maneira muito fácil: diferentemente de uma loteria, que você tinha que esperar um ou dois dias pelo resultado, com as bets, você pode trabalhar e fazer diversas apostas ao mesmo tempo. Isso vem reduzindo o poder de compra dos clientes desde 2022, 2023. É um bombardeio na mídia o tempo todo, nas redes sociais.
Uma pesquisa da PwC apontou que o varejo se preocupa com a falta de mão de obra. O quanto isso é um problema para o Assaí? A queda do desemprego e a abertura dos trabalhos por aplicativo tem motivado isso. Nós ainda estamos presos à CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], que precisa ser rediscutida. Ela pode ser incompatível com os anseios das novas gerações. Muitas pessoas preferem trabalhar por conta, com horário flexível, e ter maior remuneração, porque os custos trabalhistas das plataformas são muito menores. O varejo tem enfrentado dificuldade em contratar, até por causa da carga horária.
Existem pontos na regulação do comércio varejista no Brasil que deveriam ser revistos? A discussão da escala 6 por 1 [seis dias de trabalho e um de folga] é saudável, mas o Brasil ainda não pode reduzir a quantidade de horas semanais, porque os nossos níveis de produtividade ainda são baixos. Mas poderia mudar a legislação, para permitir uma carga de trabalho flexível, para que a pessoa trabalhe cinco dias na semana. Ou a possibilidade de trabalhar meio período. Hoje está muito difícil para quem contrata CLT competir com o regime dos aplicativos. A empresa tem um custo muito elevado de contratação, mas o trabalhador recebe pouco. A diferença entre o custo total do trabalhador e o que ele efetivamente coloca no bolso chega a mais de duas vezes no Brasil.
Hoje o Assaí é uma “corporation”, uma empresa sem controlador. Mas tem a sua cara, foi você quem liderou o salto da companhia nos últimos 14 anos. Trabalhar a sucessão é um tema para você? Tem que ser; como humanos, envelhecemos. Nesse período, a companhia saiu de 6.000 para 87 mil colaboradores, de 38 para 302 lojas, faturamento de R$ 3 bilhões em 2010 para R$ 80 bilhões em 2024. Mas nós também valorizamos o crescimento das pessoas, o trabalho como meio de ascensão social. Essa é a minha história e de muitos outros diretores do Assaí. Uma empresa é feita de gente e de exemplos, eu procuro liderar pelo exemplo. As pessoas podem não ouvir o que você diz, mas vão observar o que você faz.
Você é técnico em contabilidade, não fez faculdade, nem MBA. Barriga no balcão é a melhor graduação no varejo? No meu caso, não foi opção. Algumas qualidades pessoais me ajudaram. Mas eu sou um grande incentivador do estudo. Só o curso superior, porém, não te prepara. A vivência prática, a experiência, a compreensão, tentar aprender com os outros, com quem sabe mais do que você. Na vida, quem gosta de você às vezes fala o que você não quer ouvir.
Como deve ser o Assaí em 2030? A única certeza do futuro é que estaremos errados em qualquer previsão. Precisamos estar sempre preparados para qualquer desafio. Nós nos tornamos a empresa com maior número de clientes –40 milhões passam todo mês pelas lojas– , e agora queremos elevar essa oferta de preço baixo para outras categorias. Uma delas é a de medicamentos sem prescrição, o Brasil está atrasado nisso. Em qualquer país de primeiro mundo, você vai ser atendido [nesta categoria] em supermercados. Como atacarejo, muito provável que conseguiríamos reduzir muito o preço dessa categoria, assim como hoje somos um dos maiores revendedores de pneus do país.
RAIO X – Belmiro Gomes
Idade: 53
Origem: Santo André (SP)
Onde trabalhou: BJ Santos, Musamar, Atacadão
Formação: técnico em contabilidade
ASSAÍ COMEÇOU PARA ABASTECER BANCAS DE PASTEL DE FEIRA
Rodolfo Nagai fundou o Assaí em São Paulo em 1974, para abastecer bancas de pastel de feira e pizzarias. O nome deriva da palavra japonesa Asahi e significa “sol nascente”. Em 1985, ainda com uma única loja, o Assaí foi reconhecido como o maior revendedor de muçarela da capital paulista.
Em 2007, o GPA (Grupo Pão de Açúcar) adquiriu 60% da companhia, então com 15 lojas. No ano seguinte, a rede chegou a outras regiões, como Recife e Rio de Janeiro. Em 2011, o GPA compra a totalidade do Assaí e Belmiro Gomes foi nomeado CEO.
O Assaí cresceu em uma velocidade maior que a do GPA e se separou do grupo em 2021. Cada companhia passou a trabalhar de forma independente, se reportando ao controlador francês Casino. A rede contava então com 212 lojas e passou a negociar suas ações na B3.
No mesmo ano, o Assaí comprou por R$ 4 bilhões 71 lojas que eram do Extra Hipermercados, operação descontinuada pelo GPA, e chegou aos bairros e a consumidores com maior poder aquisitivo. Em 2023, a rede de atacarejos se torna uma “corporation”, com 100% das ações negociadas no Novo Mercado da B3.
RAIO X
Fundação: 1974, em São Paulo (SP)
Funcionários: 87 mil
Faturamento 2024: R$ 80,6 bilhões
Lojas: 302
Presença: 24 estados, mais Distrito Federal
Principais concorrentes: Atacadão, Grupo Mateus, Tenda