O aumento das receitas de estados e municípios, inclusive via transferências recebidas da União, ajudou a inflar o espaço que governadores e prefeitos têm para contratar novos empréstimos. O dinheiro irriga os cofres regionais no curto prazo, mas gera uma dívida a ser paga no futuro —compromisso que, não raro, recai sobre seus sucessores.
Como não há garantia de que as receitas se sustentarão de forma permanente, há risco de desequilíbrios na hora de quitar as parcelas.
A distorção decorre de uma portaria do Tesouro Nacional que determina como é calculado o chamado espaço fiscal, indicador de limite de crédito para os entes subnacionais. Esse valor é uma proporção da RCL (receita corrente líquida), que tem subido com o crescimento da arrecadação tributária e de transferências federais, inclusive emendas parlamentares.
Estudo do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) antecipado à Folha mostra que a combinação da regra com o momento de alta nas receitas impulsionou o espaço fiscal e também a tomada de novos financiamentos.
No ano passado, segundo o estudo, o Tesouro autorizou R$ 48,9 bilhões em operações de crédito para estados e municípios, a maior parte delas com garantia da União (que honra os pagamentos em caso de inadimplência). Em 2023, foram R$ 46,4 bilhões em novos contratos, em valores já atualizados pela inflação.
Os montantes contratados são bem menores do que os recordes históricos. Eles foram observados durante o primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), quando a flexibilização das garantias fez jorrar empréstimos para estados em péssimas condições financeiras. Em 2013 e 2014, foram liberados em média R$ 78 bilhões ao ano, em cifras atualizadas.
Mesmo assim, o estudo aponta que os valores atuais representam mais do que uma normalização após um período de limites reduzidos. Entre 2016 e 2022, a média anual ficou em R$ 18 bilhões.
“Como a receita está crescendo muito, o espaço fiscal que está sendo aberto é muito grande para contratar operação de crédito. Isso reflete bem a situação fiscal dos estados e dos municípios? Eu acho que não. É um problema que deveria ser discutido”, afirma o economista Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV Ibre. Ele assina o estudo com a economista Isabela Duarte Kelly e o assistente de pesquisa Giosvaldo Teixeira Júnior, também do FGV Ibre.
A metodologia do espaço fiscal foi criada em 2018 após os desequilíbrios gerados pela política de crédito do governo Dilma. O objetivo era eleger um parâmetro objetivo para definir o limite de cada ente, até então negociado caso a caso e sujeito a intervenções políticas. A RCL virou referência porque estados e municípios não podem emitir dívida própria e precisam custear suas despesas com o fluxo de caixa.
A portaria do Tesouro diz que o espaço fiscal pode ir de zero até 6% da RCL, a depender da saúde financeira do ente. Os melhores ainda podem ganhar um bônus de 0,25% a 1% adicional para cada meta cumprida no âmbito de seus planos de ajuste.
O problema, segundo Pires, é que uma RCL maior neste momento não garante que haverá recursos necessários no futuro para honrar as prestações. “O ente tem receita hoje, mas vai pagar a dívida no ano que vem. Precisa ter espaço fiscal no ano que vem, não agora”, alerta.
A Folha procurou o Tesouro Nacional ao longo de duas semanas para falar sobre o tema, mas o órgão se limitou a enviar respostas por escrito.
Para o Tesouro, a RCL “não é definidora da possibilidade ou não de tomada de operações de crédito”. No agregado, afirma o órgão, o espaço fiscal considera as projeções fiscais para o exercício.
“No critério individual, são levados em consideração a disponibilidade de caixa, a poupança corrente e o endividamento”, diz. A resposta, porém, não explicita que essas variáveis costumam ser medidas como proporção da RCL —ou seja, quando ela sobe, há uma percepção de melhora fiscal que pode interferir nos limites de crédito.
No último ciclo de avaliação desses critérios, 11 estados melhoraram sua nota, inclusive o Rio de Janeiro, que sustenta uma das maiores dívidas com a União, paga parcelas reduzidas graças à proteção do RRF (Regime de Recuperação Fiscal) e foi um dos mais atuantes em defesa do socorro recém-aprovado pelo Congresso. Mesmo assim, a nota ainda não permite contratar novos financiamentos.
Apenas um estado (Acre) teve a classificação reduzida. O Tesouro diz ter como objetivo “manter acesso a crédito a entes que possuem capacidade de pagamento” e afirma não vislumbrar crise nos entes subnacionais, que apresentam indicadores “em níveis saudáveis no agregado”. Para o órgão, “eventuais problemas pontuais” decorrem de decisões locais.
Manoel Pires avalia que o sistema hoje está mal calibrado e permite uma discricionariedade excessiva: basta uma nova portaria do Tesouro Nacional para mexer nos critérios. “Se o governo quer ver essas operações como algo negativo, ele pode retrair bastante. E um governo que vê isso com outro olhar pode ser mais flexível e acelerar.”
A título de exemplo, em abril do ano passado, o Tesouro decidiu dobrar o bônus concedido a estados em 2024 com base nas metas atingidas em 2023, ano que já havia se encerrado.
A RENEGOCIAÇÃO DO PROPAG
A recente guinada na política de crédito para estados e municípios preocupa pelo risco de deterioração nas contas subnacionais e elevação da dívida pública. Mas outra medida, gestada no Executivo e turbinada pelo Congresso, também pode abrir espaço para aumento de gastos: o Propag (Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados).
A renegociação das dívidas com o Tesouro permite cortar de 4% para 0% o juro real dos contratos e ainda reduzir a correção monetária. Na prática, a União pode abrir mão de até R$ 1,3 trilhão em receitas financeiras até 2048.
Ao fazer isso, o governo federal libera espaço nos orçamentos estaduais para que eles contratem outras despesas, o que pode pressionar as contas no futuro.
O fiel da balança será São Paulo. Detentor da maior dívida, o estado pode deixar de repassar R$ 412 bilhões à União até 2047, segundo projeções do Tesouro. Até metade do valor iria para um fundo de equalização, a ser repartido com os demais entes.
Por isso, estados como Espírito Santo afirmam que sua adesão vai depender de São Paulo. Sem o embarque do principal devedor (e maior provedor do fundo), a renegociação seria pouco vantajosa.
O governo paulista foi procurado ao longo de duas semanas, mas não respondeu. Outros endividados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, dizem aguardar a apreciação dos vetos presidenciais, que barraram algumas vantagens adicionais.
Há aqueles que já sinalizaram desinteresse. O governo do Paraná diz que o programa não se alinha ao planejamento do estado. Tocantins afirma que não vai aderir e criticou o “ganho para quem não fez em determinado momento a tarefa de casa”.