O setor de energia teme que a denúncia de espionagem contra autoridades do Paraguai, envolvendo Itaipu, migre do terreno diplomático para a conta de luz. O imbróglio já levou à suspensão das negociações do Anexo C, que rege os termos financeiros do acordo bilateral. A percepção é que haverá mais pressão para cobrar um alto preço pela energia da usina binacional.
Reportagem do UOL mostrou que a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) invadiu computadores de integrantes do governo paraguaio em busca de dados sobre os custos em Itaipu. A arapongagem cibernética teria ocorrido meses antes de a atual gestão fechar um acordo tarifário com o país vizinho.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nega a ação. Divulgou que a espionagem tinha sido autorizada no governo anterior e suspensa em 2023.
Na sexta-feira (4), em sua primeira manifestação sobre a ação do hacker, o presidente do Paraguai afirmou que a espionagem “abre velhas feridas”, remetendo à Guerra do Paraguai, e que o Brasil ainda não consegue deixar para trás a “história de ódio” entre os dois países. Reparação pelas perdas com esse conflito, entre 1864 e 1870, é um argumento constante na mesa de negociação da usina bilnacional.
Diante do quadro atual, a espionagem é vista como munição certa para o Paraguai em Itaipu, avalia quem conhece as relações diplomáticas na estatal. “Não tenho a menor dúvida de que o vazamento vai parar na mesa de negociação da energia”, explica Paulo Pedrosa, presidente da Abrace, entidade que representa os grandes consumidores industriais de energia.
Pedrosa foi membro do conselho de administração de Itaipu e morou dois anos em Assunção. Diz que os paraguaios são, de longa data, negociadores habilidosos na defesa de seu país. Ao longo dos anos conseguiram elevar seus benefícios em Itaipu, ao ponto de o custo da energia para eles, em MW (mega-watt), chegar a ser quase metade do custo pago pelos brasileiros.
Para fazer a negociação do Anexo C, que deveria ocorrer a partir do aniversário de 50 anos do Tratado de Itaipu, em agosto de 2023, o Estado paraguaio se preparou por anos. Treinou seus articuladores e contratou consultores, entre eles, o economista americano Jeffrey Sachs, referência por seu trabalho no combate à pobreza.
ACORDO FIRMADO EM 2024 PREJUDICOU CONSUMIDOR DO BRASIL
O vazamento da Abin é visto com estranhamento no setor de energia nos dois países. Ninguém entendeu muito bem a razão de o Brasil espionar o Paraguai no que se refere a Itaipu, onde os dois governos têm acesso a tudo.
O citado acordo, que teria sido precedido pela espionagem, foi fechado entre abril e maio do ano passado e em nada beneficiou o Brasil, afirmam especialistas. Pelo contrário, trouxe inúmeros prejuízos para os consumidores brasileiros.
O acordo reeditou um sistema operativo muito desvantajoso para o Brasil. Também elevou e congelou, por três anos, o Cuse (Custo Unitário dos Serviços de Eletricidade, como é chamada a tarifa na usina). Praticamente 80% do Cuse é pago pelos brasileiros.
Foi fixado o valor de US$ 19,28 por kW (quilowatt) para 2024, 2025 e 2026, com o governo brasileiro buscando alternativas para manter o preço de US$ 16,71 do lado de cá da fronteira. Ainda houve um erro na projeção para segurar esse valor. O buraco foi coberto por dinheiro dos mesmos consumidores brasileiros, que seria usado para reduzir a conta de luz dos mais pobres.
Porém os governos de Brasil e Paraguai garantiram um adicional de US$ 660 milhões, por três anos. Somando esse valor com os extras de outros anos, anualmente garantiram US$ 1,5 bilhão para o dois países gastarem como quiserem.
No Brasil, o dinheiro da usina está indo até para obras da COP30, no Pará, quando o correto é que o gasto ocorra na área de influência da usina. Reportagens da Folha mostraram que há problemas em parte dos convênios, como contabilidade opaca e contratação de aliados políticos do PT.
No entendimento do setor, as poucas vantagens desse acordo para o Brasil, que levariam a redução do custo de energia, estão ameaçadas pelo caso Abin.
O mesmo acordo previa que as novas regras financeiras estariam definidas em dezembro do ano passado, ao final das negociações do Anexo C. As discussões foram prorrogadas para maio deste ano, e agora estão suspensas.
É o Anexo C que define como se calcula o Cuse —determina que deve ele deve ser a soma dos custos operacionais e obrigações da usina. Uma nota reversal, em 2005, no governo Lula 1 —controversa como outros itens desse tema— passou a ser usada para sustentar o gasto socioambiental nesse pacote. Até hoje, porém, inúmeros especialistas entendem que as conversas entre os dois países para impedir a redução do Cuse e garantir mais dinheiro para obras e projetos socioambientais desrespeita o tratado. Sem um novo acordo financeiro, fica valendo essa barganha.
O acordo do ano passado também previa que, em 2027, a tarifa seria pelo custo operacional, expurgando boa parte dessa despesa extra. Não está claro o que acontece agora.
“Fiquei muito preocupado com as consequências desse vazamento envolvendo a Abin, porque, se já paralisou a negociação do Anexo C, que garantia a gente tem que, envolvendo esse acordo danoso para os consumidores, não venha algo pior?”, pergunta Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional de Consumidores de Energia.
Para Barata, um sinal ruim veio na quarta-feira (2). O MME (Ministério de Minas e Energia) publicou a portaria que autoriza um grupo de empresas a importar energia do Paraguai pela subestação de Itaipu. A importação era outro item previsto no acordo do ano passado que causou muita polêmica.
Os governos dos dois países afirmam que é possível transmitir energia pela linha de uso exclusivo da usina. Inúmeros especialistas que conhecem a operação de Itaipu negam com veemência essa possibilidade, e dizem que há risco de o Paraguai vender no mercado brasileiro uma energia de Itaipu já paga.
“Não tem alternativa para trazer essa energia do Paraguai passando pela subestação de Itaipu. Enquanto o Anexo C estiver vigente, essa importação é impossível, porque toda energia que flui de Itaipu está contratada e foi paga”, afirma Barata.
“O fato é que a operação de Itaipu é opaca, sem transparência ou clareza e, no meu entendimento, isso é irregular.”
Do lado do Paraguai, Itaipu tem as contas acompanhadas pela Controladoria-Geral do Paraguai e os dirigentes vão constantemente ao Congresso prestar esclarecimentos sobre para onde vai o dinheiro. Do lado brasileiro, nem o Tribunal de Contas da União ou o Ministério Público têm acesso a sua contabilidade, e o Congresso, que pode cobrar Itaipu, reluta em convocar seus integrantes.
Um acordo de 2021 previa a criação de uma comissão binacional para monitorar a contabilidade da usina. Os trâmites foram interrompidos pelo atual governo, e a perspectiva era que poderiam ser retomados ao final das negociações do Anexo C, que foram suspensas no caso Abin.