Pesquisadores apontam falhas e lacunas nos novos estudos realizados para analisar a viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA) da Ferrogrão, projeto ferroviário que pretende ligar Mato Grosso ao Pará para transporte de carga do agronegócio.
A conclusão faz parte de um parecer técnico que acaba de ser concluído por um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de especialistas do Observatório do Clima e do Instituto Socioambiental. A Folha teve acesso ao documento.
Segundo os pesquisadores, há problemas graves em relação às informações contidas no “Balanço de Emissões” e no “Caderno Socioambiental” que compõem os estudos do projeto e que foram concluídos no ano passado.
O EVTEA, afirmam, não apresenta uma análise adequada dos impactos cumulativos, limitando-se a listar impactos diretos e indiretos, sem considerar sua magnitude e significância. Isso significa ignorar efeitos acumulados de outros empreendimentos na região, como rodovias e projetos logísticos, o que subestima o real impacto ambiental.
São mencionados fatores como a pavimentação de trechos da BR-163, rodovia que liga os estados, e a expansão da hidrovia do rio Tapajós, a partir de Miritituba (PA). A avaliação é que a Ferrogrão pode gerar um efeito de “indução ao desmatamento”, facilitando novas frentes de ocupação agrícola e expansão da infraestrutura no bioma amazônico.
Um segundo parecer técnico, elaborado por integrantes de organizações não governamentais e por professores de universidades federais no Pará, também apontou risco de ampliação de desmatamento, além de grilagem, em áreas adjacentes da Ferrogrão.
O documento foi elaborado pelo grupo de trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental, que inclui ainda advogados populares. O parecer será apresentado nesta quinta-feira (20) na Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará).
Conforme a análise feita, a Ferrogrão representa um risco a povos indígenas em isolamento voluntário, cuja presença é analisada por técnicos da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Também é necessário que o estudo de viabilidade leve em conta mais três terras indígenas, em razão dos impactos previstos, conforme o parecer.
O documento diz que o projeto da ferrovia subestima as possibilidades de desmatamento, usa um termo de referência defasado e deveria estar alinhado ao PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal), do MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima).
Em nota, o Ministério dos Transportes afirmou que “irá se debruçar sobre os estudos apresentados pela sociedade civil”. “Todos os estudos da Ferrogrão consideraram a legislação brasileira”, disse.
Segundo a pasta, a complexidade do empreendimento levará à inserção de “soluções de planejamento global” no Plano Nacional de Logística. “O ministério mantém canais de comunicação sempre abertos com a sociedade civil.”
O estudo de viabilidade, segundo a análise feita pelos especialistas de USP e UFMG, deixa de seguir metodologias reconhecidas, como a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) —instrumento de planejamento e gestão ambiental utilizado para analisar os impactos ambientais, sociais e econômicos de políticas, planos e programas antes de sua implementação.
Segundo os pesquisadores, o EVTEA descarta riscos de desmatamento sem apresentar um embasamento técnico para isso, presumindo que a expansão agrícola na região ocorrerá apenas em pastos degradados. O estudo da Ferrogrão, dizem os especialistas, reconhece um potencial desmatamento legal de cerca de 500 mil hectares, mas não avalia o desmatamento indireto e induzido.
“Não há garantia [de] que o cultivo agrícola no estado de Mato Grosso ocorrerá apenas em áreas de pasto degradado. As evidências sugerem o contrário: 27% de todo o desmatamento observado em Mato Grosso entre 2012 e 2017 ocorreu em fazendas de soja”, afirmam os pesquisadores.
Dados do MapBiomas mostram que, entre 2012 e 2023, mais de 136 mil hectares de floresta foram convertidos em soja na área de influência da Ferrogrão. O próprio estudo admite que 12 municípios não possuem pastagens degradadas suficientes para atender à demanda agrícola futura, levando a um desmatamento legal de 557.617 hectares até 2050.
Com 933 quilômetros previstos para interligar Sinop (MT) a Miritituba (PA), levando a carga do agronegócio para os portos da região Norte do país, a Ferrogrão é o projeto que tem enfrentado maior dificuldade de licenciamento ambiental, por avançar em território amazônico.
A conclusão do parecer é que o processo de licenciamento da obra deveria ser suspenso até que seja elaborada a sua avaliação ambiental estratégica para a região entre os rios Xingu e Tapajós, incluindo análise de impactos cumulativos.
Os pesquisadores cobram uma modelagem estatística para prever os impactos da ferrovia no uso do solo e no desmatamento, considerando cenários com e sem o projeto.
Além disso, solicitam o maior engajamento da sociedade civil na discussão e o alinhamento do projeto com as metas ambientais do Brasil, como a neutralização do desmatamento até 2030.
O parecer foi produzido a partir de um painel realizado em novembro de 2024, que teve a participação de pesquisadores da Escola Politécnica da USP, do Centro de Sensoriamento Remoto e do Centro Tecnológico de Modelagem Ambiental da UFMG, que assinam o documento, além de convidados, como o Climate Policy Initiative da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O estudo também será apresentado na Ufopa.
Hoje, a definição desse empreendimento ainda depende de um aval do STF (Supremo Tribunal Federal), após ter sido judicializado devido a seus impactos na região e em unidades de conservação. No ano passado, o governo atualizou o traçado da estrada para diminuir as contestações socioambientais ao projeto.
O Ministério dos Transportes diz que trabalha com a perspectiva de fazer o leilão até o fim de 2026, mas afirmou que o projeto não depende apenas da pasta. Já a secretaria do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), ligada à Casa Civil, acredita que a licitação deve ficar para o próximo ciclo de concessões.
Em entrevista à Folha, Marcus Cavalcanti, secretário especial do PPI, afirma que a Ferrogrão é um projeto de longo prazo e grandes investimentos, e que o governo também trabalha em outras concessões ferroviárias, como a Fico (Ferrovia do Centro-Oeste) e a Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste).
“Está no Novo PAC a conclusão dos estudos [da Ferrogrão]. Tem a alternativa de mudança de traçado. Mas eu acho que a gente não licita nesse ciclo”, diz.